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Requiem

  • Marcelo Oriani
  • 28 de out. de 2015
  • 6 min de leitura

REWIND.

VÍTIMA

A lua desesvazia-se.

AGRESSOR

E Deus desacorda.

VÍTIMA

Ele desvai embora.

AGRESSOR

Meus passos que descorriam dele.

VÍTIMA

Trazem ele agora de volta.

AGRESSOR

Eu desrespiro fundo para descansar meu cansaço.

VÍTIMA

Ele me deschuta.

Ele me deschuta.

Ele me deschuta.

Ele me deschuta.

E dessente no seu corpo toda dor do meu.

AGRESSOR

Ele é agora indiferente aos meus chutes.

VÍTIMA

Ele me desolha pela última vez.

AGRESSOR

Eu desmijo na cara dele.

VÍTIMA

E desrega seu ódio recém-plantado em mim.

AGRESSOR

Meu mijo desbota sua cara toda tingida de vermelho.

VÍTIMA

Ele desguarda a faca.

AGRESSOR

E a mão descansada para no ar.

VÍTIMA

Ele desdá a centésima facada.

AGRESSOR

E porque morto, ele já não grita mais.

VÍTIMA

Ele se desmata em mim.

AGRESSOR

Seu corpo deschora sangue por mim.

VÍTIMA

Ele desdá a nonagésima nona facada.

AGRESSOR

E desescrevo o nome dele no obituário do jornal.

VÍTIMA

Ele desdá a octagésima sétima facada.

AGRESSOR

Seu telefone – agora distante – destoca.

VÍTIMA

E eu desviro estatística.

AGRESSOR

Destoca.

VÍTIMA

Ele desdá a septuagésima quarta facada.

AGRESSOR

Destoca.

VÍTIMA

Eu desnasço número.

AGRESSOR

Destoca.

VÍTIMA

Ele desdá a sexagésima terceira facada.

AGRESSOR

Destoca.

VÍTIMA

Eu desmorro meu nome.

AGRESSOR

Eu desdou a qüinquagésima sexta facada.

VÍTIMA

No meu sexo.

AGRESSOR

E desmato nele seu desejo.

VÍTIMA

Ele desmata o gay em mim.

AGRESSOR

Eu desdou a quadragésima segunda facada. E a faca...

VÍTIMA

Corta minha boca de homem que beija pela primeira vez uma outra também de homem.

AGRESSOR

...Passeia pelas suas lembranças...

VÍTIMA

Descola meu corpo de homem deitado sobre um outro também de homem.

AGRESSOR

...Enquanto atravessa sua cabeça.

VÍTIMA

Separando minha mão de homem dada a uma outra também de homem.

AGRESSOR

Até que seu passado reste desvazado no chão.

VÍTIMA

Ele desdá a trigésima quarta facada.

AGRESSOR

E desmato nele seu namorado.

VÍTIMA

Que desmorre em mim sem sentir.

AGRESSOR

Seu corpo desvira o túmulo dele.

VÍTIMA

Ele desdá a vigésima primeira facada.

AGRESSOR

No peito.

VÍTIMA

E castra meu coração.

AGRESSOR

Para nunca mais amar homem nenhum.

VÍTIMA

Ele desmata o gay em mim.

AGRESSOR

Eu desdou a décima sexta facada.

VÍTIMA

E a vida que se desprende de mim.

AGRESSOR

Agora desvoa solta pelo ar.

VÍTIMA

Feito balão de gás.

AGRESSOR

Escapado das mãos de uma criança.

VÍTIMA

Procurando no céu o caminho de volta para casa.

AGRESSOR

Eu desdou a sétima facada.

VÍTIMA

E o silêncio da madrugada desrasga-se.

AGRESSOR

Na boca de um cão distante que deslate.

VÍTIMA

Ele desdá a primeira facada. Na minha garganta.

AGRESSOR

E ele deslembra da mãe dele.

VÍTIMA

Me mentindo toda noite – quando criança – que a morte não existia para que eu conseguisse dormir. Tamanho era meu medo de morrer.

AGRESSOR

Ele está desmorrendo agora.

VÍTIMA

E não tenho mais ela para me desmentir.

AGRESSOR

Ele desmorre.

VÍTIMA

Ele descorta minha voz. E me devolve o direito ao grito.

AGRESSOR

Ele desgrita.

VÍTIMA

Um grito já nocauteado.

AGRESSOR

Que desmaia no ar.

VÍTIMA

Antes mesmo de virar a esquina da orelha de alguém.

AGRESSOR

Que distraído despassava na rua de trás com fones no ouvido.

VÍTIMA

Ele me dessoca.

AGRESSOR

A cara.

VÍTIMA

Ele me dessoca.

Ele me dessoca.

Ele me dessoca.

Ele me dessoca.

AGRESSOR

Até que ele desfalece.

VÍTIMA

E lembro de você para fugir dali.

Do seu dedo tantas vezes me desenhando um carinho no mesmo lugar que ele agora me pinta socos.

Sua mão – sem que você soubesse – foi bálsamo para minha dor.

Eu te sorrio.

AGRESSOR

A boca dele descospe um sorriso nati-morto.

VÍTIMA

Ele me dessoca.

Ele me dessoca.

Ele me dessoca.

Ele me dessoca.

AGRESSOR

Ele desacorda.

VÍTIMA

Então ele me desacerta um murro na boca.

AGRESSOR

E ele desgrita a dor do parto.

VÍTIMA

Ele descorta o cordão umbilical da minha felicidade.

AGRESSOR

Que jaz desquebrada no chão.

VÍTIMA

Ele me desarrasta nu.

AGRESSOR

Enquanto ele liga para Deus.

VÍTIMA

Ele me desarrasta nu.

AGRESSOR

Ele desreza.

VÍTIMA

Meu corpo vai desperdendo a pele pelo chão.

AGRESSOR

Ele desreza.

VÍTIMA

Escrevendo nele meu caminho.

AGRESSOR

Ele desreza.

VÍTIMA

Ele me desarrasta nu.

AGRESSOR

Mas Deus, porque dormia, nunca atendeu sua oração.

VÍTIMA

Tufos do meu cabelo desvoltam da sua mão para minha cabeça.

AGRESSOR

Ele é o pesadelo que Deus tem.

VÍTIMA

Meu coro cabeludo desdoi.

AGRESSOR

Eu despego ele pelos cabelos.

VÍTIMA

Ele desbate minha cabeça no chão.

Ele desbate minha cabeça no chão.

Ele desbate minha cabeça no chão.

Ele desbate minha cabeça no chão.

AGRESSOR

Seus pensamentos desescorrem pela cabeça.

VÍTIMA

Eu desmaio. Viro julho.

AGRESSOR

E se esconde de mim dentro do útero da sua mãe.

VÍTIMA

Eu não quero nascer.

AGRESSOR

Ele tenta – então – se enforcar no cordão umbilical.

VÍTIMA

Mas uma mão me puxa apressadamente para fora dela.

AGRESSOR

Ele desacorda.

VÍTIMA

Deschorando uma lágrima.

AGRESSOR

Que desescorre seu rosto em direção ao olho.

VÍTIMA

E já dentro – se evapora antes de se jogar.

AGRESSOR

Ele deschora nela todas as doenças que poderia ter pego e seu corpo rejeitou.

VÍTIMA

Todos os carros que poderiam ter atropelado e, no entanto, me desviaram.

AGRESSOR

Toda bala perdida que poderia tê-lo achado e não fez.

VÍTIMA

Deschoro todas as mortes (possíveis) que poderiam ter me achado.

AGRESSOR

Antes de mim.

VÍTIMA

Ele me deschuta.

Ele me deschuta.

Ele me deschuta.

Ele me deschuta.

Ele me deschuta.

AGRESSOR

Algo feito vidro – dentro dele – se desquebra.

VÍTIMA

Minha voz desmaia de dor.

AGRESSOR

Se você queria uma chance para fugir, tá aí.

VÍTIMA

Ele me desdiz enquanto se afasta.

AGRESSOR

Ele tenta se levantar. Ele descai.

VÍTIMA

Ele se desaproxima.

AGRESSOR

Ele desgrita um grito já rouco de tão gasto.

VÍTIMA

Ele me deschuta.

Ele me deschuta.

Ele me deschuta.

Ele me deschuta.

Ele me deschuta.

AGRESSOR

Então ele se lembra de quando ganhou trezentos e sessenta e cinco dias de presente.

Guardados dentro de uma agenda.

Que ele prometeu viver com você.

VÍTIMA

Ele me deschuta.

Ele me deschuta.

Ele me deschuta.

Ele me deschuta.

AGRESSOR

E agora desvomita no chão os cacos da promessa quebrada.

VÍTIMA

Ele dessolta o cabo de vassoura no chão.

AGRESSOR

Ele se desencolhe de medo.

VÍTIMA

Ele desrasga minha roupa.

AGRESSOR

Eu desvejo seu corpo nu.

VÍTIMA

Ele desescreve em mim seu ódio.

AGRESSOR

Ele desgrita enquanto eu desaproximo.

VÍTIMA

Ele desri para mim.

AGRESSOR

Ele destenta fugir se arrastando pelo chão.

VÍTIMA

Ele me desbate com o cabo.

Ele me desbate com o cabo.

Ele me desbate com o cabo.

Ele me desbate com o cabo.

Até que eu não consiga mais me mexer.

AGRESSOR

Vira de bruço.

VÍTIMA

Ele desdiz.

AGRESSOR

Ele não consegue mais se mover.

VÍTIMA

Ele me desvira com chutes.

AGRESSOR

Agora você vai descobrir se gosta mesmo de homem ou se vai detestar para o resto da sua vida.

VÍTIMA

Ele me desdiz enquanto enfia o cabo em mim.

AGRESSOR

Ele desgrita.

VÍTIMA

Ele enfia o cabo com mais força.

AGRESSOR

Sua dor desvaza para fora do corpo.

VÍTIMA

Meu telefone destoca.

AGRESSOR

Goza, seu viado.

VÍTIMA

Ele desdiz forçando mais a entrada do cabo em mim.

AGRESSOR

Destoca.

VÍTIMA

Ele me desrasga como se eu fosse folha de papel por dentro.

AGRESSOR

Não é disso que você gosta?

VÍTIMA

Destoca.

AGRESSOR

Ele deschora um grito líquido.

VÍTIMA

Destoca.

AGRESSOR

Ele desvê no visor a palavra “mãe”.

VÍTIMA

Destoca.

AGRESSOR

Ele tenta alcançar o telefone com a mão.

VÍTIMA

Mas ele deschuta o aparelho para longe.

AGRESSOR

O telefone não destoca mais.

VÍTIMA

Minha mãe desvolta para janela.

AGRESSOR

Desfuma a espera do filho que não vai mais voltar.

VÍTIMA

E meu atraso desvira fumaça na boca dela.

AGRESSOR

Ele deschora.

VÍTIMA

Ele destira o cabo de dentro de mim.

AGRESSOR

Sua dor desescorre pelas pernas no sentido contrário.

VÍTIMA

E se evapora dentro de mim.

AGRESSOR

Eu despego um cabo de vassoura do chão.

VÍTIMA

Ele me desbate.

Ele me desbate.

Ele me desbate.

Ele me desbate.

AGRESSOR

Ele desgrita por socorro.

VÍTIMA

Ele me desdá pontapés. Eu descaio no chão.

AGRESSOR

Ele se destreme de medo.

VÍTIMA

Ele desbate na minha cara com uma garrafa de vidro.

AGRESSOR

E no chão os cacos se desconfundem.

VÍTIMA

É possível agora distinguir os cacos da cara dos da garrafa.

AGRESSOR

Ele deschora.

VÍTIMA

Ele me desleva para um terreno baldio.

AGRESSOR

Ele desdá dois passos.

VÍTIMA

Ele também.

AGRESSOR

Ele desvira a esquerda.

VÍTIMA

Ele também.

AGRESSOR

Fazendo o que sozinho na rua uma hora dessas?

VÍTIMA

Ele me desaborda.

AGRESSOR

Procurando macho?

VÍTIMA

Ele despega meu braço a força.

AGRESSOR

Se gritar, morre.

VÍTIMA

Ele desdiz enquanto assume a direção dos meus passos.

AGRESSOR

Meus olhos descruzam os dele.

VÍTIMA

Meus olhos descruzam os dele.

AGRESSOR

Eu dessigo ele.

VÍTIMA

Eu desapresso meus passos.

AGRESSOR

A madrugada desamanhece.

VÍTIMA

A lua volta a ser cheia.

AGRESSOR

Eu desando na rua bebendo uma garrafa de cerveja.

VÍTIMA

Eu dessaio da boate

PAUSE.

AGRESSOR

Eu sinto muito.

VÍTIMA

Quem vai sentir sou eu.

AGRESSOR

Você apareceu do nada.

VÍTIMA

Eu não vou ter tempo de desviar de você.

AGRESSOR

E eu não consegui fingir que não te vi.

VÍTIMA

Por favor, minha mãe.

AGRESSOR

O que tem?

VÍTIMA

Está me esperando chegar.

AGRESSOR

...

VÍTIMA

Posso pelo menos ligar para ela e dizer que não precisa me esperar?

AGRESSOR

Não. Pronto?

VÍTIMA

Por que você vai fazer isso?

AGRESSOR

Porque eu preciso.

...

AGRESSOR

Por que você não fugiu?

VÍTIMA

Porque eu não preciso.

...

VÍTIMA

Pronto.

PLAY.

VÍTIMA

Eu saio da boate.

AGRESSOR

Eu ando pelas ruas bebendo uma garrafa de cerveja.

VÍTIMA

A madrugada amanhece.

AGRESSOR

Deus ainda dorme.

VÍTIMA

Meus olhos cruzam os dele.

AGRESSOR

Eu sigo ele.

VÍTIMA

Eu apresso meus passos.

(...)

FIM.


 
 
 

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