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Nada de dó

  • Rita Couto
  • 28 de out. de 2015
  • 10 min de leitura

É uma sala. Essa sala tem uma forma de semi-lua. É escura, pequena e acolhedora. Como um útero. As paredes são escuras, pretas. Existe apenas uma grande janela no fundo do espaço, onde se vê uma lua cheia que clareia o espaço. Ao lado dessa janela, existe um painel branco-sujo. Num dos cantos da sala se encontra uma porta de madeira, isolada. Na frente, bem no meio da sala, estão dois cubos de madeira. É uma suposta sala de casa.

Cena I

Apenas a luz da lua na janela ilumina a cena. Se escuta duas vozes femininas em coro:

-Existe casa... cheia de pó!

Em tempos foi asa... que agora deu nó!

Era uma jornada que agora está só!

Abrimos a porta... [entram pela porta do cenário duas mulheres. A luz ambiente aumenta um pouco e se percebe que as mulheres são velhinhas. Elas olham para o público] -Mas nada de dó!

Pedimos a voz, de nós e de vós!

Luz aumenta. Elas se sentam cada uma num cubo de madeira. Esperam. Esperam. Entra um japonês, o mordomo das duas velhas, que toca uma instrumento de oriental-de metal com ecos metálicos e mostra para o público um cartaz: “Aqui se (diz)Espera”, e se retira logo de seguida.

M- Estou com medo.

H- Medo de quê?

M- Que mais ninguém venha visitar gente! Que se esqueceram de vez da gente...e ai ficamos aqui... sozinhas... para sempre!

H- Para sempre não existe, sua burra. Morreriamos não tarda...[pausa] Qual de nós você acha que vai morrer primeiro?

M- Não quero falar de morte. Chega uma idade em que é proibido falar de morte. Mas você não entende isso...

H- Quem sabe a gente já está morta e nem sabe. Nesse caso até faz sentido ninguém vir visitar a gente! HA! [ri alto muito de repente. Pausa] Quem falou que vinha visitar a gente?

M- Ah... Não lembro bem mas tem sempre alguém que...

H- [interrompe] Quem??? Você não tem mais ninguém! “Mas você não entende isso” [imitando M na vez anterior]

M- Tenho sim!... E você? Você tem várias pessoas que poderiam te visitar e ainda assim, ainda assim ninguém vem! Sabe porquê? Porque já ninguem tem paciência pra te aturar! Já ninguém te...

H- [interrompe] Então tá, então me diz... que horas vão comparecer essas suas ilustres “visitas”? Me diz, que eu vou já me preparar, quero ficar bonita pra elas! Vá, que horas? Me diz?

M- Sei lá que horas! Porque é que você tá perguntando isso? Você sabe que a gente já não usa relógio! Há muito tempo que o relógio biológico faz bem mais sentido do que a ...

H- [interrompe, bem seca] Eu acho que será você.

M- Eu o quê?

H- Você... que vai morrer primeiro.

M- ...Porque você tá falando isso?

H- Porque você sempre foi mais fraca do que eu!!! E você engordou muito nesses últimos tempos... Está inchada. Isso não é sinal de boa saúde.

M- Você fala do que não sabe! [pausa] Sabia que você está ficando zarolha...estrábica... É! Eu reparei nisso outro dia. Seu olho esquerdo desvia demais quando você fica cansada... Sabe o quê? Eu queria que fosse você primeiro, eu ia adorar te ver morrendo...assim bem devagar. AH! Eu ia ficar observando com prazer... comendo torta de maçã, ou bolo de chocolate, ou qualquer outro doce. Seria bem melhor do que assistir TV... a TV que nem existe.

H- [fica dando muita risada]

M- É sério! Estou falando sério. Adoraria assistir a um espetáculo desses,assim, ao vivo. E se desse para repetir, ficaria assistindo várias vezes seguidas.

[As duas ficam um tempo em silêncio e vão se entre-olhando]

M- Estou cansada... cansada de esperar alguma coisa acontecer.... estou com fome. Quero um doce... Quero uma TV...preciso de...

H- [interrompe] Pra quê você quer uma TV sua velha podre??? A gente tem o Yan-Yan! YAN YAN!!! [pega num sininho e toca ele alto. Entra pela porta um mordomo japonês, que nunca, em momento algum dessa peça, falará português]

H- Tá fazendo alguma coisa para a gente comer?

YanYan- うん[acena com a cabeça que sim]

H- Então interrompe isso agora mesmo e faz aquela massagem especial nos pés fedorentos dessa velha chata...ela hoje está rabujenta pra caralho.

M- Rabujenta nada! Eu... Eu só não me sinto muito bem. [mordomo começa a massagear seus pés. vai massageando lentamente]

H- Hmmm... O que é que você tem? Fala comigo.

M- Ainda não sei. Acho que não sei explicar...

H- Está grávida? Talvez esse inchaço estranho esteja...

M- [interrompe] Chega. Não fala do que você não sabe! Você nunca me...[a voz se vai derretendo com o prazer das massagens] Você nunca me entendeu... você... [ela não consegue terminar a frase, o prazer das massagens é maior]

H- Eu o quê?! Você já nem me deixa te olhar direito. Faz tempos que não vejo seu corpo nu.

M- Você não sabe nada... você...[completamente derretida]

[YanYan continua massageando os pés de M, subindo devagar até aos músculos da barriga da perna]

H- Já é noite?

M- Já... Espreite lá! Óh! [vai falando lentamente, embalada pelas massagens, como se estivesse drogada] Elas vão aparecendo assim...[olha para cima]...uma por uma...brilho a brilho... às vezes...eu imagino que um dia... um dia...vai sair uma mão gigaaaaaaaaaaante desse céu estrelado... para me dar colo... e me levar para looooooonge daqui...onde... onde só há...escuridão!!! [desperta de repente e se ajeita] É isso! Escuridão! Hoje não vamos acender as luzes!!! [emocionada]

H- Você sabe que isso me incomoda.

[luz ambiente da sala começa a reduzir até ficar apenas a luz do luar. Yan Yan para de massagear M para ir acender a luz)

M- Não! Onde é que você vai? Não acende!

H- Acende sim! Deixa essa velha louca falar sozinha!

[YanYan, já impaciente, acende a luz e sai de cena]

M- Me fala... Você tem medo de quê?

H- De você... e de mim...

[H se levanta, apaga a luz e sai de cena, se colocando atrás do painel que está no fundo. Na sala sobram apenas M e o luar]

Cena II

Monólogo de M para o público, vem foco de luz nela

M- Uma vez eu senti o cheiro dela. Da lua. Estava só eu e ela. Minha loucura com a sua doçura. A lua é...um pouco doce. Seu sabor me preencheu de noites que eu já tinha vivido e nem sabia. Não saberia, não saboreei...

Me banhou de clarões e me tatuou de orações! Foi então que eu enxerguei a escuridão! [luz de foco deixa de iluminar seu rosto, iluminando apenas o seu corpo. Seu rosto passa a ser confundido com a lua atrás. Seus movimentos de corpo ganham mais precisão e mais vida] E diante do seu encanto, eu cantei, dançei. Suei...apenas eu! Eu e a lua! Resolvi ficar nua pra sentir meu corpo, realmente...sentir. Pela primeira vez eu senti meu corpo... me abri para a sua imensidão! Às vezes sinto falta disso. De sentir meu corpo. Por isso eu quero escuridão. Já não preciso de mais nada além da noite e do luar.

E dessa escuridão, que nos aproxima mais de nós!

[Luz de foco apaga totalmente. Fica só a luz da lua. Ela sai de cena]

Cena III

Mordomo entra em cena e luz ambiente aumenta. Ela traz um outro cartaz escrito “Aqui, (sem)ti...insônia”. Dá um toque num dos seus instrumentos orientais, que produz um eco de metal forte e sai de cena. Elas entram as duas por trás do painel que está no fundo da sala, já vêm conversando desde lá.

H- Sabe do que eu me lembrei?

M- Não.

H- De como era...quando minha vagina ficava molhada... [M faz cara de quem não quer ouvir o que H está prestes a contar]. Hoje eu percebo que o mundo inteiro é que nem minha vagina, sabe. Um dia tudo vai secar.

As pessoas abusam... abusam da ilusão...! Vivem se aconchegando no quentinho, tudo é húmido, sentem sede, matam sua sede. Se ocupam somente com o prazer e só mentem! Mentem e esquecem! Esquecem que um dia tudo vai desitratar. Até que chega o momento e você sente isso no próprio corpo. Aí você sabe. T-u-d-o vai secar... tão seco que se perde o ar...se rasga a pele. É dificil engolir até os próprios fluídos. E é assim com tudo, né? Tudo. A terra toda um dia vai ficar assim! Murcha. Que nem minha vagina. E a sua também. Eu tenho certaza que um dia...

M- [interrompe] Estou cansada dessas suas demagogias preversas. Você se sente muito exemplar né !? Você no fundo não passou de uma promíscua! Aliás, você continua sendo promíscua...Promíscua!

H- Pro-mis-cu-a...Pro-mis-cui-da-de. É verdade sim. Não vou negar...essa palavra sempre mexeu comigo. Esse gosto em espalhar meus cheiros! Meus cheiros crus, nus, abertos, continuos. [risada curta] Agora você... você deve preferir a palavra promisCUIDADO né? Sempre cuidadosa, sempre cautelosa, sempre contida, sempre nas medidas, sempre...

M- [interrompe] É melhor assim do que promis CU-DADO! É!!! Você vive dando seu CU p’ra tudo o que mexe. Até hoje... você fica esfregando essa sua bunda de ruga mole em todas as coisas. [M se sente visivelmente incomodada por ter falado e explodido desse jeito]

H- Ah! Lembrei de uma estória! Isso de ficar sozinha muito tempo... a memória as vezes é invadida e... vou contar. YANYAN [grita] vou precisar da sua ajuda! Traz aqueles instrumentos orientais que você tanto gosta de brincar! [Yanyan entra pela porta, neutro de emoção, carregando uma sacola com instrumentos orientais harmônicos e de metal. Se arruma, junto com seus instrumentos, no canto da sala] isso, preciso das suas vibrações sonoras que nos intensificam a memória! A estória que vou contar é sobre a primeira vez... a primeira vez que minha vagina ficou molhada!

M- Pfffff...previsível... Eu sabia que seria algo assim... promíscuo... [impaciente, se coloca no canto da sala, pronta para escutar a estória de H... A sonoplastia de Yanyan começa, enchendo a saça de vibrações sonoras orientais

Cena IV

Monólogo de H acompanhado por sonoplastia de YanYan, foco de luz aumenta em sua direção

H- Eu devia ter uns 16, 17 anos. Eu saía sempre de casa pra caminhar, todos os fins de tarde. Eu gostava de caminhar sem destino... caminhava por caminhar. Jogava meu corpo na rua e... caminhaaaavaaa, meu vestido de flores colorindo aquele cinzento do passeio. Eu só queria ser mais um detalhe em movimento naquele passeio. Até que um dia...Um homem me olhou de um jeito que me fez parar. Eu não conseguia caminhar. Fiquei ali, parada... Ele estava sentado do outro lado da rua. Esperando alguma coisa. Suas mãos me olharam também. Ele não parava de me olhar. Me olhou inteira...por dentro, por fora. Sem conseguir andar, decidir me sentar na berma do passeio. Em lados opostos, a estrada era a única fronteira. Quando ele se levantou, me enfrentou e me olhou uma última vez...uma última vez... última...e seguiu...seguiu o seu caminho. Eu não sabia o que fazer... a única coisa que eu senti...foi minha vagina molhada. Essa foi a primeira vez que ela se molhou realmente... sem que eu me tocasse. Fiquei ali sentada até anoitecer. Depois caminhei até casa. Nunca mais soube caminhar sem destino, até um dia... um dia tudo seca. E já nem destino vale a pena...

[YanYan interrompe a sonosplastia pega nos instrumentos e se levanta pra sair. Foco de luz sai dela, ficando uma luz abiente em toda a sala.M observa a cena]

H- Onde é que você vai? (para Yanyan).

YanYan- 私はあなたが私は眠る眠るせません

H- E você sai assim...do nada... Sem se explicar? Sem desejar boa noite?

YanYan- [suspira de cansaço. Muito cansaço] おやすみなさい.

H- A gente te contratou pra quê afinal?

YanYan- おやすみなさい.

M- Boa noite pra você. E apaga a luz que a gente... A gente vai tentar dormir.

[Yanyan apaga a luz. Sai de cena. Elas saiem as duas para trás do painel que esta no fundo da sala.]

Cena V

Monólogo YanYan

Luz aumenta um pouco. YanYan entra em cena com um cartaz escrito em japonês”これが私の瞬間です” (ninguém no publico vai saber o significado, mas isso significa “agora é a minha vez de falar”)

YanYan em jeito de desabafo para com o público, profere essas palavras escritas abaixo, que só falam mal sobre as velhas e como ele não aguenta mais cada uma delas. O público não vai percebe ruma única palavra-a nao ser que haja um japonês sentado no meio do público- mas em geral, todos vão entender que ele fala sobre elas, pois ele as imita enquanto critica e se desespera.

YanYan:はこれらの古いのは疲れ。これ以上を取ることができない...彼らは私に仕事を与えることにしたが、時には好むそれらを放棄し、放って残します。彼らは料理をするのか分からない。単なる売春婦. [começa a chorar]

私は私がいつかそれらを殺す殺す殺すクレイジー古い ... [sai de cena.]

Cena VI

Luz dá foco a YanYan que aparece novamente em cena, enxugando lágrimas e mostrando um cartaz que diz: “Fim da espera. E eu, despeço-me”. Ele sai de cena deixando apenas a luz da lua.

Efeito de luz atrás do painel do fundo faz aparecer as silhuetas de H e M. Elas dormem num tapete, no chão. H acorda e se senta. M repara em H e se senta também.

H- Não consigo dormir.

M- Sabe... Eu sinto que o Yanyan não quer mais ficar com a gente.

H- A gente afasta todo o mundo. Todo o mundo se afasta de nós... Se ao menos a gente tivesse algum pedaço de nós que não estivesse seco... [começa a rir e de repente fica séria. Pausa.] Não sei porque meus filhos não me visitam mais...

M- Talez seja assim mesmo... a gente tenha que ficar aqui... vivendo só de memórias que vão ficando cada vez menos... até ficar só escuridão... [olha para cima]

H- Memórias sem filhos...você não teve nem um filho... não deu vida. Me diz... você alguma vez tentou?

M- Sim. Uma vez... e eu engravidei... engravidei da lua... e estou parindo até hoje... estou parindo minha própria solidão.

H- [Ri. Pausa] Você não está só! A gente se tem... e espera juntas...espera memória, juntas... espera companhia... juntas...

M- Vamos dormir?

H- A gente se tem uma a outra! Isso é muito bom! Nem todo o mundo...

M- [interrompe] Que bom nada. Vai dormir... me deixa dormir. Há muitos luares que não durmo direito. Preciso sonhar...

H- [interrompe] Então cala a boca e dorme.

[as duas se deitam]

M- Sabe... Eu tenho a certeza que amanhã alguém vem visitar a gente !

H- Sim... Eu também ...

Silhueta das duas deitadas vai reduzindo devagar. Elas cantam em coro:

“Existe casa... cheia de pó!

Em tempos foi asa... que agora deu nó!

Era uma jornada que agora está só!

Fechamos a porta, pedemos a voz, de nós e de vós... Mas nada de dó!”

[Yanyan atravessa a sala com uma mala na mão, olha para as velhas uma última vez e sai pela porta do cenário. A luz atrás do painel continua reduzindo até não se ver mais nada. Fica apenas a luz da lua que aos poucos também reduz, até ficar só escuridão.]


 
 
 

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