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Estrada de ferro

  • Ariane Lima
  • 28 de out. de 2015
  • 17 min de leitura

Estrada de ferro

Arianne Lima


Personagens

Rubrica

O Arauto

Repórter

A menina

A mulher

Moleque

Outro moleque, o valentão

Senhora

Pregador



Ouve-se o barulho de uma goteira. Tudo preto, escuro. Um quadrado está desenhado na parede central e outro no chão, no meio do palco, feitos com giz branco. O quadrado da parede, tela da televisão, está vazio e no quadrado do chão só se vê: um banco azul do lado de dentro, e uma placa do lado de fora onde se lê: “Cuidado com o vão entre o trem e a plataforma. Evite acidentes”. Vê-se também um sofá e um fogão em frente à televisão. Silêncio. Ouve-se o barulho de uma goteira e só.

A menina entra na sala, chorando. Coloca o milho no fogo. Liga a televisão, que agora projeta uma imagem de chiado e tem um ator no meio, o Repórter. Ele fuma um cigarro e lê uma revista. A menina senta na poltrona como se assistisse à televisão, e esperasse a pipoca estourar. Ela chora.

O Arauto, que assistia à tudo em meio ao público. Se levanta.

Estação: Primeira

Arauto: Senhoras e senhores, sou eu mesmo quem escreve estas histórias, que moram aqui e, portanto, é dado à mim o direito de conta-las. Apresento-lhes estes rabiscos, feitos direto no lápis de cor! Sem direito à borrachas e sem medo de errar! (Pausa) É, olha, meu amigo... Pra dizer a verdade, com bastante medo de errar! Mas com apenas 35 centavos no bolso! Por favor, não repare nas rasuras.

Aqui, nesse meio vagão que a minha ideia permite desenhar, mora uma menina. Uma rosa. Ela e seus fantasmas.

Passada a catraca da ilusão, nada aqui vos pertence mais. Tudo neste ‘vagão-vago-casa’ é sonho! É a mistura de todos os teus medos, ambições e fantasias, rabiscados numa sonhada só!

E eu, ainda que assim, meio sem jeito com as palavras, finjo que dou a direção!

(Pausa)

Sabe, eu já nem me lembro quando foi que ouvi, vi e vivi esses lamentos da menina que chorava. Esse caso da menina-moça, que pulava igual pipoca por dentro, mas que por fora... Chorava mais que o São Francisco! Até agora eu consigo ouvir o barulho das lágrimas dela pingando no chão.

(A pipoca já queima na panela e o cheiro de queimado invade toda a sala. Ouve-se a música de chamada do telejornal. O chiado da televisão desaparece. O repórter apaga seu cigarro, fecha sua revista, se posiciona e entra no plantão do telejornal da noite.)

Estação: Beira-mar

O Repórter: Boa noite. Esta é mais uma edição de plantão sobre o acidente ocorrido no metrô na tarde de hoje. Caos no metrô. A confusão continua. Muitas pessoas estão presas em ambas as estações. Confinados dentro dos trens, nas portas e pelas plataformas.

Arauto: A menina, ali. Sentada em sua poltrona, chora.

O Repórter: Dentro dos vagões não se consegue respirar, nem se mexer. As pessoas estão feridas, tentando quebrar os vidros. Crianças, mulheres, idosos.

Arauto: A menina, chora!

O repórter: O perigo se espalhou. É possível ouvir da rua, muitas pessoas gritando! Não se sabe quantas são as vitimas e ainda não foi possível identificar nenhum nome! Angústia, desespero e medo no metrô!

Arauto: Bem embaixo de nós! Dizem que tudo o que vai pra debaixo da terra, vai porque morreu. Se lá em cima é céu, voo, lá embaixo mora o que? (Pausa) A menina, chora.

O Repórter: Não sente o cheiro de queimado, menina? Olha o milho, menina! A pipoca! Olha, ali, a panela! Tá queimando!

Arauto: A menina, chora.

O repórter: Caos no metrô. Caos na cozinha. Fumaça! Fumaça!

Arauto: A menina, chora.

O repórter: As pessoas gritam e as pipocas: queimam, pulam.

Arauto: A menina, chora.

O repórter: Tudo preto na cozinha. Bafo no vagão. Escuridão e tristeza na cozinha e no vagão, fumaça!

Arauto: E a menina, menininha, distraída em suas lágrimas, não viu. Ela não quis. Podendo ficar, se agradou mais a menina, do mergulho. Fez-se lagoa. Se atirou em rio de lágrimas. A menina virou pedaço de mar, tempestade.

O repórter: O metrô continua parado.

Arauto: O metrô, eu, você, eles, a menina. Parados em todas as estações. Parados na televisão. Parados no medo de todas as casas dos amores que não chegam.

O repórter: Tem muita gente lá dentro, menina, olha ali! As pessoas.. (Pausa) As pessoas queimam, pulam, juntas.

Arauto: Perdida no sentido da viajem, enquanto o resto do mundo se amassava bem embaixo dela. Ela chorou no mundo inteiro, era água! Era dança! Por cima das cabeças, nos sonhos, nos trilhos. De mãos dadas consigo mesma, com seu belo vestido branco e com os pés, soltos! Neste momento o sal da pipoca, tem exatamente o mesmo gosto das lágrimas dela. Formando cristais, igual sal de cozinha. A menina agora é solúvel! Virou onda! Chora e dança dentro de si. E pelo vagão.

O repórter: Acorda menina, acorda! Caos no metro, incêndio na cozinha.

(A menina chorando, de repente, se levanta, devagar. O vestido, encharcado de lágrimas. Sai da sala, sem olhar para trás. Fogo aceso ela se foi.)

Arauto: E foi. E se jogou nos poucos vãos que se via, se largou embaixo dos bancos, e saiu sem despedidas. A sua voz, pausada, só me disse antes de ir: “Próxima estação, ‘Console-me, por favor’. Acesso à linha ‘sem número’, amarelo-sol”.

Onde você foi, menina?

Repórter: Desembarcou do lado esquerdo do trem. Lado errado.

Arauto: A porta que a pequena abriu, abriu e fechou mais rápido que o vento de um sopro dela. Agora era lei, a única lei ali: Ninguém entra e ninguém sai.

Repórter: Agora é só silêncio. Silêncio, no vagão. Cheiro de queimado, cinzas e nada, nada na cozinha.

Arauto: Caos, caos... Na menina.

Repórter: Boa noite.

(A televisão volta a chiar. O repórter acende de novo o seu cigarro e pega a sua revista.)

Esta estação não sabe falar

Arauto: “E quando o relógio tocar, a gente se vira no tempo, muda a estação, dá meia volta, gira a ampulheta e começa tudo outra vez.”

Cena 2

Estação: Estamos operando normalmente

Entra um coro cantando. A menina também está entre eles, agora ela canta e sorri. Vem de mãos dadas com uma mulher mais velha, sua mãe. Todos param cantando em uma das extremidades do quadrado do metrô. A música para quando ouve-se o sinal de que a porta vai se fechar. Todos mudam suas posturas, e sérios, entram no quadrado, que fica apertado. Assim que entram ali começam a se movimentar devagar nas mesmas direções, como se estivessem num navio ou num trem que balança. Silêncio.

A menina: Mas mãe. Então só hoje é o dia do meu aniversário? Quando for de noite vai acabar e não vai ser mais? (Olha para sua mãe, que sorri)

Cena 3

(Os atores continuam no movimento do balanço e em silêncio.)

Estação: Aqui

Arauto: Era este o lugar, o metrô, por onde todo mundo só passa. “O reino de Lugar Nenhum”. E Lugar Nenhum escrito assim mesmo, com as inicias em letras maiúsculas: não como uma ausência, mas como uma identidade. Igualzinho à esses todos aí de todo o dia, com gente igual à essa do dia inteiro, com esses mesmos rostos, mesmos cheiros de gente! Tudo pensando junto, pensando o mundo, pensando alto aqui no meu desenho, alto pra gente ouvir.

(Nessa hora os atores dentro do vagão começam a murmurar pensamentos. Cada um os seus. Todos juntos, não se entende exatamente o que nenhum deles está dizendo)

A menina: Hoje, até acabar, é o dia do meu aniversário!


Cena 4

Estação: Amendoim Crocante

Arauto: Era tarde, fim de tarde. Hora de ir pra casa. Os vagões, cheios de gente com vontade de cama. Com saudade de casa.

Dentro dos vagões apertados, muitos olhares, empurrões, amores rápidos.

(Pausa)

E assim, como a chuva que vai e de repente, sem porque chega e fica, muita gente foi parar ali. Essa gente toda não sabia!

Foi desse jeito também com meninos do amendoim.

Moleque: Amendoim crocante, torrado e salgado na manteiga! É R$1,00! Olha o amendoim! Amendoim da melhor qualidade! Pra matar aquela fome do final da tarde, chefe! Amendoim crocante, torrado e salgado na manteiga! É R$1,00!

Arauto: Todos dormem no vagão, e os que não estão dormindo, fingem que não estão vendo o menino passar. Tudo, fica mais interessante que ele, e a sua roupa suja agora. O celular, a revista, o chão. Até os que compram o seu amendoim barato e crocante. Ninguém, nin-guém, tem olhos pra ele.

(Outro moleque, mais alto que o primeiro, e mais forte, entra no mesmo vagão.)

Outro moleque, o valentão: Olha o amendoim crocante, minha gente! Torrado e salgado na manteiga, só R$0,50! Olha o amendoim, torradinho! Amendoim de primeira! Pra você, meu patrão! Amendoim crocante e salgado na manteiga! É só R$ 0,50! Olha o amendoim!

(O primeiro moleque ao ouvir a voz do Outro, tenta procurar, no vagão cheio, de onde vem aquela a voz. Muito angustiado. Ela encontra rápido! Ele vende amendoins ali há 5 anos! Assim que o encontra, vai depressa em direção à ele!)

Arauto: Como assim irmão?

(Eles cochicham)

Moleque: Como assim irmão? Eu cheguei aqui primeiro!

Outro moleque, o valentão: Chegou e daí? E eu cheguei depois!

Moleque: Então, ué! Muda de vagão!

Outro moleque, o valentão: Vô muda nada não! Muda você!

Moleque: (Ficando tenso) Mas eu cheguei primeiro! Se liga!

Outro moleque, o valentão: Tô nem aí!

Moleque: Mano, e você tá vendendo o saquinho à R$0,50? Tá maluco? Não quer ganhar nada não?

Outro Moleque, o valentão: Fica na sua! Esse é o meu preço! Desculpa aí se cobro mais barato que você e vendo mais!

Moleque: Tudo roubado isso, aí né?

(Os dois olham em volta pra ter certeza que à clientela não está ouvindo mesmo a conversa deles)

Outro moleque, o valentão: E se for? O que é que você tem à ver com isso?

Moleque: (Pensativo) É sim que eu sei...

Outro moleque, o valentão: Tá, mas e aí? Posso voltar à trabalhar?

Moleque: (Já com medo de perder a discussão) Olha só, vou te lançar a real, num queria, mas olha, só escuta! Depois você continua se quiser.

Outro moleque, o valentão: Fala! Mas fala logo! Já perdi muito tempo aqui nesse seu lero-lero!

Moleque: Olha, a minha mãe tá internada! Tá em estado terminal! Foi internada ontem, lá no interior! E eu tô quase com o dinheiro todo pra poder ir pra lá! Pelo amor de deus, mano! Só muda de vagão! É só isso que eu to te pedindo!

Outro moleque, o valentão: Porra moleque, perdi minha mãe faz pouco tempo! Porra! Porque você não falou logo? Mudo sim! Como é que eu ia saber dessa fita, né!

Moleque: Jura mesmo que você vai descer? Vai mesmo trocar de vagão?

Outro moleque, o valentão: Vou, claro irmão! De boa! Aliás vou pegar outro trem! O trem de volta! Eu já ia voltar pra casa daqui um tempinho mesmo.

Moleque: Poxa! Valeu aí, irmão! Sou muito grato mesmo, de coração! Deus de abençoe! Te dê em dobro!

Outro moleque, o valentão: Magina, velho! Fica tranquilo! Que deus abençoe sua mãe! Desejo muita saúde pra ela! Pra ela sair logo dessa!

Moleque: Brigado! Brigado mesmo!

Outro moleque, o valentão: Falo! A gente se vê amanha, por aí!

Moleque: Falo! Até!

(O Outro moleque, desce do vagão, e para na plataforma. Senta, pra esperar o trem de volta. Assim que ele desce o celular do Moleque toca lá dentro)

Moleque: Alô? Oi? Oi amor! Fala! (Pausa) Tô indo pra casa já, já! Mas antes vô vende mais um pouco aqui! (Pausa) Pois é, depois liga lá pra casa da minha mãe e fala pra ela que eu contei de novo aquela história lá, e deu certo! (Pausa) Olha, falta pouca coisa, vô queima tudo isso aqui agora, e já vô pra casa, tá? Beijo!

(Gritando)

Olha só minha gente, eu tô indo pra casa já hein! Preciso acabar com isso tudo logo! Minha mulher tá me esperando! Olha só a promoção, quem comprar agora vai pagar só R$0,50 no pacote! Quem vai querer? Amendoim da melhor qualidade! Não dá pra não levar, hein!

Arauto: Ele ficou no vagão. Não foi. Ficou. Vendeu sim, ali, mais um 15 pacotinhos. Mas, pra que? Cheiro de amendoim, no vagão. Tá sentindo?

A menina: Hoje, até acabar, é o dia do meu aniversário!

Cena 5

Estação: A cadeira azul – Quem senta?

Arauto: Dança da cadeira! Quem senta no banco colorido? Eu! Você? Eu to mais cansado! Trabalhei o dia inteiro! Ela? Mas ela é velha, coitada! Mas porque anda de metrô então! Isso é hora? Não é hora de idoso andar de metrô, pô! Sabe que vai tá lotado! Eu vou sentar! Ela tá gravida, mas o que eu tenho à ver com isso! To super cansado! Trabalhei o dia inteiro! Andei pra caramba hoje! E esse neném que ela tá segurando é pequeno! Não pesa! Já sei! Dá aqui, eu seguro o neném! E as sacolas, e a bengala!

Cena 6

Estação: Mi dê uma ajuda!


Arauto: E tinha gente pedindo moedas, também. Uma senhora.

Senhora: Boa tardi gente!

Coro: Olha ela aí outra vez!

Senhora: Não quero atrapaia a viaji di vocês!

Coro: Olha ela aí de novo!

Senhora: Mas mi dê uma ajuda?

Coro: Dizem que ela rica, tem casa na praia e tudo!

Senhora: Pelo amor di Deus gente!

Coro: E fica aqui pedindo dinheiro todos os dias!

Senhora: Mi ajudi gente!

Coro: Ela mente!

Senhora: Por favor!

Coro: Ela mente!

Senhora: Pelo amor di Deus! Pelo amor di Jesus! Por tudo o que vocês mais ama na vida gente, mi dê uma ajuda!

Coro: Ela mente!

Senhora: Pelo amor di Deus! Pelo amor di Jesus! Por tudo o que vocês mais ama na vida gente, mi dê uma ajuda!

Coro: Ela mente!

Senhora: Pelo amor di Deus! Pelo amor di Jesus! Por tudo o que vocês mais ama na vida gente, mi dê uma ajuda!

Coro: Ela mente! Mente! Mente!

Senhora: Pelo amor di Deus! Pelo amor di Jesus! Por tudo o que vocês mais ama na vida gente, mi dê uma ajuda!

Coro: Pelo amor di Deus! Pelo amor di Jesus! Por tudo o que vocês mais ama na vida gente, mi dê uma ajuda!

Arauto: Mente?

A menina: Hoje, até acabar, é o dia do meu aniversário!

Cena 7

Estação: Skateboarding

Arauto: E tanto tinha de tudo naquele trem, de tudo mesmo, que tinha gente embaixo, gente em cima! Tinha um rapaz, aleijado das pernas, que andava de skate pelo vagão pedindo moedas e outro que surfava em cima do vagão, surfava nas ideias.

Estação da história do rapaz que surfava em cima do vagão, e do menino, sem as pernas, que pedia dinheiro em cima de um skate.

Aqui de cima, o sol.

Aqui em baixo, os pés.

Aqui de cima, o balanço.

Aqui em baixo, cheiro de peidos e de chulé.

Aqui em cima, a luz.

Aqui em baixo, eu.

Aqui de cima, a brisa.

Aqui em baixo, só eu.

Aqui de cima, o perigo.

Aqui em baixo, o medo.

Aqui de cima, a queda.

Aqui em baixo, as moedas.

Aqui de cima, nada

Aqui em baixo, a fome.

Aqui de cima, o azul do céu,

Aqui em baixo, o azul das calcinhas no espelhinho do meu apontador.

(As mulheres do vagão ajeitam suas saias, incomodadas)

É... Cuidado meninas!

A menina: Hoje, até acabar, é o dia do meu aniversário!


Cena 8

Estação: Ouça agora a palavra do senhor

Constituição Federal Art. 5º. VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

Pregador: Olá irmão! Olá irmã! Foi Deus, o nosso senhor Jesus quem me mandou aqui pra pregar neste vagão! Pra dizer pra você aqui hoje, que você faz parte do rebanho dele e que ainda dá tempo de salvar a sua alma! Pra dizer pra você que sempre é tempo de olhar para o caminho certo e de seguir os passos do criador! Meu irmão, minha irmã, é chegada a hora da volta do pai, e é preciso que nós estejamos de acordo com os seus ensinamentos. O satanás quer dominar a sua casa! É hora de deixar os vícios, de deixar os prazeres carnais, de deixar as coisas mundanas e preparar o espirito para o dia do juízo! O meu deus quer você, dê um glória ä deus agora e aceite Jesus na sua vida!

Arauto (voz do metrô): Anúncios da presença de Satanás em todos os lados!

Ninguém é obrigado a se submeter indiscriminadamente a doutrinas religiosas. Os trabalhadores não conseguem ler jornais, livros ou até mesmo conversar na hora de irem e voltarem do trabalho.


Pregador: Eu ouvi um aleluia? Venha irmão, venha agora para o caminho do senhor!

Não ouça mais aos chamados do Satanás! Aleluia!


Arauto (Voz do metrô): Não tem nada a ver com os direitos assegurados pela constituição, nem se trata de preconceito à uma religião específica. Mas o estado é laico e pela própria constituição ninguém tem o direito de impor sua fé ao outro, notadamente em ambiente fechado, como é o caso do trem.

Pregador e coro: Glória à deus!

Arauto: A auxiliar de limpeza Dalva Maria de Jesus Pereira, de 49, discorda. “Tem muita gente que precisa mas não vai a igreja”, diz a passageira. “Então o trem é um bom lugar para pregarem o que está na bíblia”.

Pregador: Eu ouvi um amém?

Coro e pregador: Amém!

A menina: Hoje, até acabar, é o dia do meu aniversário!

Cena 9

Estação: Com cheiro de flor

Nós vivemos numa rota de colisão, e não sabemos. Seja por acidente ou intencional. E não podemos fazer nada à respeito. Assim, ali também estava uma Mulher-com-cheiro-de-flor.

A mulher: Com cheiro de rosas amarelas, sim?

Arauto: Sim, ela, que cheirava à rosas amarelas, antes de chegar ali estava em sua casa, se preparando para sair, para levar flores para um amigo no hospital.

A mulher: Flores! Dizem que rosas amarelas trazem bem-estar, leveza.

Arauto: E enquanto isso, e do outro lado do mesmo bairro, uma senhora saia de casa para comprar pães para o café da tarde, que ia servir em sua casa, para algumas amigas. A senhora, esta dos pães, saiu, mas esqueceu parte do dinheiro em casa, e voltou para pegar. Enquanto isso a mulher e suas flores, se ajeitavam, tomavam café, comiam biscoitos.

A mulher: Dessas coisas, que as mulheres e as flores fazem!

Arauto: E enquanto ela comia biscoitos, a senhora saiu de casa com um pouco de pressa e com o dinheiro nas mãos, para ir a padaria. A padaria mais próxima, que para sua surpresa e desespero, estava fechada, com um aviso do lado de fora que dizia: ‘fechado por motivo de luto’. A mãe do padeiro-chefe tinha morrido na noite anterior, de pneumonia.

A mulher: É nos pequenos detalhes! Nada é por acaso!

Arauto: Enquanto isso, a Mulher-com-cheiro-de-flor, molhava seus biscoitos numa xícara de chá de camomila.

E a senhora, que estava com pressa para conseguir os seus pães, e que só conhecia outra padaria que ficava do outro lado do bairro, entrou depressa num taxi, nervosa. Queria voltar depressa para casa para preparar o café! Mas o taxi teve que parar porque de repente um rapaz começou a jogar água com espuma no vidro dianteiro do carro. Ele queria dinheiro, algumas moedas, para comprar comida.

A mulher: Camomila acalma.

Arauto: E enquanto aquele homem, com fome, lavava o vidro do carro, a Mulher-com-cheiro-cheiro-de-flor terminava de tomar seu chá e colocava sua xícara na pia para lavar. E enquanto ela lavava sua xícara, o taxi que seguia em direção à padaria teve que parar de súbito mais uma vez, porque um homem atravessou a rua de repente. Ele falava ao telefone chorando. Estava brigando e terminando o namoro.

Ao passar pelo rapaz, o taxi ainda teve de esperar um ônibus que estava pegando alguns passageiros à sua frente. Enquanto isso, à Mulher-com-cheiro-de-flor pegava sua bolsa e suas flores para sair.

A mulher: Já era hora!

Arauto: O carro estacionou e o taxi pode seguir em frente, enquanto isso a Mulher-com-cheiro-de-flor, passava um batom vermelho.

A mulher: Vermelho. Sem brilho.

Arauto: Quando o taxi, parou na porta da padaria, a Mulher-com-cheiro de flor saia de seu prédio. Ela e a senhora apressada se esbarraram e as suas flores caíram numa poça d’água, sua bolsa caiu no chão aberta e todos os seus pertences se espalharam pela calçada. Com a ajuda da senhora, ela recolheu tudo do chão e se ajeitou. Ela levou alguns minutos para fazer isso. Jogou aquelas flores no lixo, decidiu comprar outras perto do hospital e aceitou o pedido de desculpas da senhora apressada. Só então saiu em direção à estação.

(Pausa)

Se ao menos uma coisa tivesse dado errado.

A mulher: Se ao menos uma coisa tivesse dado certo.

Arauto: Se ela não tivesse passado o batom vermelho, ou se o ônibus tivesse pego seus passageiros antes, ou se ela tivesse resolvido não lavar a xícara..

A mulher: Se ao menos uma coisa tivesse dado certo!

Arauto: Se aquele homem não tivesse brigado e terminado o namoro, se ela não tivesse tomado o chá de camomila, ou se aquele rapaz com fome tivesse parado qualquer outro carro para lavar!

A mulher: Se ao menos uma coisa tivesse dado certo!

Arauto: Se ela não tivesse comido os biscoitos, se a mãe do padeiro-chefe da padaria mais próxima não tivesse morrido, se a senhora tivesse se lembrado de levar o dinheiro todo assim que saiu de casa... Se ela tivesse pego um taxi mais cedo.. A Mulher-com-cheiro de flor, teria ido para a estação mais depressa e teria entrado em outro trem.

A mulher: Eu tinha algumas contas pra pagar, alguns amigos pra encontrar...

Arauto: Mas, sendo a vida como ela é, uma série de eventos e incidentes interligados, que não se pode controlar. A senhora apressadíssima não passou direto por ela, distraída, fez com ela se atrasasse 10 minutos para chegar ao metrô. Três trens que ela poderia ter pego se nada disso tivesse acontecido passaram antes desse. Mas ela ainda não estava lá.

A mulher: Cheiro de camomila! Tá sentindo?

Arauto: Ela e não só ela. Ela e um homem com cheiro de graxa. Pegos pela rota de colisão da vida, foram lançados naquele vagão. E estavam ali, fazendo parte de todos aqueles outros cheiros.

(Eles se olham)

Era mesmo, gente de tudo que é tipo!

(Ela olha para Ele e sorri. Ela agora, suja de graxa. Ele retribui o sorriso. Mas logo deixam de se olhar e voltam a falar seus pensamentos, rápido, e baixo.)

Amores de metrô. Vocês sabem, como é.

A menina: Hoje, até acabar, é o dia do meu aniversário!


Cena 10

Estação: Sopro!

Arauto: Então era esse o trem!

Menina: Hoje! É hoje! Hoje é o dia do meu aniversário!

Coro: Desse jeito, com toda essa gente apertada! Era esse o dia!

Arauto: E foi assim então, a menina estava lá, dentro do vagão, de mãos dadas com sua mãe. Ela era uma menina, e só. O metro ia parar na próxima estação. Era pra ser só mais uma estação, mas ela já vinha com o gosto do fim. A porta abriu e junto abriu algum amor nos olhos da menina. Ela olha, enfeitiçada para a porta aberta. Olha lá para o final da estação parada, em direção às plataformas. Olha com uns olhos que nem dá pra dizer.

(As vozes dos atores ficam altas e de súbito param. Todos olham para a menina, que sai correndo do quadrado branco e para de frente para eles. Sua mãe tenta pega-la, traze-la de volta, mas não consegue. A menina olha para o vagão e solta um sopro em sua direção a ele, como se soprasse a velinha de um bolo.)

Arauto: A menina desceu, correndo e a porta fechou! A sua mãe grudada no desespero e colada na porta, ficou olhando a menina correndo, e pulando pela plataforma, enquanto o trem saia. Pra onde ela foi? E foi. E se jogou nos poucos vãos que se via, se largou embaixo dos bancos, e saiu sem despedidas. A mãe, agora, rasgada de medo e de raiva, só quer voltar! A menina, ninguém sabe.

A menina: Hoje, até acabar, é o dia do meu aniversário!


Cena 10

Estação: Ponto do fim

Menina: Que lugar é esse?

Arauto: E foi nessa hora que tudo se deu! (Os pensamentos que os atores falam ficam rápidos e altos, muito altos!) Foi nessa hora que a coisa toda ficou suja! O trem que já ia rápido, agora corre e para. Corre e para! Os corações seguem a dança, mesmo sem entender o ritmo.

Num silêncio de dar medo o trem parou. (Pausa e silêncio) Não se ouvia nada nessa hora. Nada. Foi o maior silêncio do mundo. O medo costurava as bocas.

Todos querendo chegar, querendo voltar, só querendo sair dali.

(As vozes dos atores viram gritos)

O metrô acelerou. Foi com tudo! Era esse o último dia, senhores!

O ultimo minuto de todos os tempos!

Foi o ultimo suspiro. Os olhares daquele metrô, o desespero da mãe, as saudades de casa!

As paixões daquele metrô iam ser eternas!

Viraram infinito.

Aqueles ali, compraram um bilhete especial. Passaram da catraca da ilusão, pra plataforma de um lugar feito de céu, onde a gente não toca e não vê, feito que é de sonho e de nuvem!

Compraram um bilhete pra um trem que não para de andar!!

(Pausa. Os atores fazem silêncio)

Esse até parou mas quando parou foi pra dizer “Fim”, acabou aqui amigos, esta é a última estação.

TER-MI-NAL.

Pra fechar as cortinas.

(O repórter volta a se posicionar. Os atores saem do quadrado e vão em direção à menina na poltrona. Eles sentam. Ela se levanta e vai até o quadrado do metrô, agora vazio, perto da tela, e assiste, sentada no banco azul)

Cena 11

Estação: Silêncio

Repórter: Em 1970, dois anos depois da chegada do metrô ao Brasil, uma linha nova foi inaugurada aqui. Ela funcionou normalmente em todos os testes que foram realizados e parecia estar pronta para operar. No entanto, dois dias após a sua inauguração, dois trens descarrilharam e se chocaram em alta velocidade nesta linha. Foram registradas 42 mortes e 250 feridos.

Anos depois descobriu-se a história de uma mulher, Assumpção, 44 anos, que vive há 40 anos internada num hospital psiquiátrico. Ela que na época do acidente tinha 4 anos de idade também estava naquele metrô. No entanto ela se soltou dos braços de sua mãe e desceu correndo do trem uma estação antes da colisão. A porta se fechou muito rápido e sua mãe não conseguiu puxa-la de volta.

Quando encontrada pela policia e perguntada sobre porque tinha deixado sua mãe e descido do vagão sozinha, a menina, que chorava muito só conseguia dizer que:

Menina: Eu vi um cavalinho do lado de fora, com um negócio na testa que tinha luz. Aí ele me chamou. Disse pra eu ir correndo, pra gente brincar e cantar parabéns. Era meu aniversário, aí eu fui!

Cadê a minha mãe?

Repórter: Viu um cavalo do lado de fora da estação, com alguma coisa brilhante na testa. Segunda a menina foi o cavalo quem a chamou para fora, para brincar. A mãe dela foi uma das vítimas fatais do acidente, que aconteceu no dia do aniversário da menina Assumpção.

Arauto: E dizem até, por aí, que as meninas choram! Mas nós sabemos (não é?), que isso tudo não passa de uma grande mentira!

(Silêncio)

Estação: ...e agora?

Retificando. Estação: ...para onde?

Retificando.

Retificando.

Retificando.

Desembarque por qualquer lado. Pelas janelas.

Este trem não prestará mais serviços, favor, desembarcar...

(Ouve-se o mais uma vez o sinal de que as portas irão se fechar. Black out.)


 
 
 

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