Anne Frank - Medéia
- Ian Boato
- 28 de out. de 2015
- 3 min de leitura
Uma mulher e uma menina trancadas num porão, em plena segunda guerra mundial. Estão submetida a uma única condição, olhar pelas frestas de uma janela.
Mulher: (baixo) Durante o dia mal podíamos abrir as cortinas ou encostar nas janelas. Sussurrávamos e andávamos nas pontas dos pés para que ninguém nos ouvisse. Ao longo do dia ouvíamos passos do lado de fora. Carros, pessoas conversando, crianças brincando.
Menina: podemos ir brincar lá fora agora?
Mulher: (olha pela fresta e diz) Não. Agora não. Vamos amanhã. Tudo bem?
Menina: Sim.
Mulher: Durante a noite, podíamos ouvir outros sons que não fossem as pessoas. Tiros, cavalos em perseguição. Ouvíamos as grades de ferro do casarão abrir e fechar a noite toda. Papai falava que ia dar um jeito. Eu nem desconfiava que do lado de fora, havia um homem que queria nos matar.
Minha família sempre foi muito religiosa e seguia sua relação com Deus muito fielmente. Eu não entendia muito bem como isso funcionava, mas tinha certeza de que havia algo muito forte. Eu sempre tomei o meu princípio de que, se existe Deus, e eu sou sua semelhança, logo concluo com razão que estou num mundo crido por ele. Mas que mundo é esse que não me permite ser liberta de mim mesma? Que mundo é esse que não me permite andar nas ruas como os outros? Que não me deixa ser livre deste lugar escuro e sujo.
(Pausa) A couve cheira muito mal depois de algum tempo. Nossa geladeira não sabe o que é uma margarina há tempos. Minha irmã e eu ficamos aqui o dia todo. Papai sai logo cedo pela manhã e volta tarde da noite. Não podemos fazer nenhum barulho alto durante o dia e nem durante a noite. Minha mãe fica na parte de cima da casa, onde fica a lojinha dela. Ela só desce aqui para baixo de tardezinha quando fecha a loja com medo dos ataques. Nós, eu e mana, só conhecemos o mundo através das revistas e jornais que papai traz. Fazíamos aquilo a tarde toda, era sempre essa rotina.
(Para a irmã) Olha! Esse aqui pode recortar. Um baile lindo não é?
Menina: E esse jornal? Podemos recortar?
(A mulher pega o jornal e lê)
Mulher: Hitler invade casas de judeus e os leva para Auschwitz. (Para irmã) Não, não recorte este. Deixe este comigo, tudo bem?
Menina: Porque não? O que diz este ai?
Mulher: Acho melhor você não saber Andrea. (Para si mesma) Eu não tinha ideia de que todo aquele reboliço lá fora poderia causar em mim e em minha irmã um medo tão grande. Cada dia que passava os dias ficavam mais longos e eternos. Quando fazia frio, não podíamos nem sequer acender a lareira, isso poderia chamar a atenção dos homens de capa.
Menina: Anne, quando você iria me contar que estamos sendo perseguidos?
Mulher: Me senti um lixo, nunca pensei que ela soubesse de tudo. É, era fato que eu não havia contado para ela, mas não pensei que ela fosse descobrir tão cedo. (Para irmã) Querida eu não lhe contei porque queria esperar o momento certo. Você ainda é muito pequena.
Menina: Que momento certo Anne? Não temos momento certo. Você terá que me contar tudo agora. Nossos momentos certos são agora; estamos no meio de uma guerra, não dá para esconder mais nada Anne. Me promete?
Mulher (para si): O que eu faria? Não poderia mentir para ela. Eu fiquei presa aqui durante toda minha vida, e agora o ciclo se repetiria com ela. Não poderia iludi-la pra sempre. O máximo das coisas chegariam a ela. Eu sabia que ela iria descobrir. Mais cedo ou mais tarde. Mas já que teria que prometer a ela, teria que prometer a mim mesma não sofrer por ela. (Para irmã) Querida, vou lhe dizer uma coisa que você pode ficar assustada, mas que vai me tranquilizar um pouco. Tenha sempre a certeza de quem você é. E sim, eu prometo, nunca mais vou lhe esconder nada. Eu te amo querida.
Comments