Autorretrato
- Ana Oliveira
- 15 de abr. de 2015
- 2 min de leitura
Vou passar a vida mastigando os erros. Olhar para trás? Não. Dentro, aqui (leva a mão ao colo e agarra a gola da camisa), há passado e futuro, só o presente não é claro. O presente vem sempre embrulhado, ora com papéis finos e laço de fita, ora com papel pardo e corda grossa. O que o embrulho esconde pode ser tudo ou nada. Às vezes o presente enforca.
Minhas pernas bambeiam em situações desconfortáveis como essas. Também não me sinto bem em salões chiques com pessoas felizes, bonitas, educadas para cheirar em pias de mármore, beber em taças de cristal, sorrir com leveza e mandar nos outros. Eu sempre preferi dançar solta nas ruas, tomar cerveja no gargalo, sem contar que nasci para ser mandada, usada, servir ao deleite dos outros.
As bombas (arregala os olhos).
Resisti, mas ainda carrego aquele medo abafado, o grito que eu não dei. Era preciso ir adiante, sobreviver. Desde então, nunca mais pude pensar profundamente sobre as baratas que resistiram aos revezes dos tempos, menos ainda nas mariposas encasuladas.
A fome, o frio e o desamparo chegavam. Os homens cegavam. Devoravam-se. Desesperados. A luta mais severa coloca sempre explorado contra explorado.
Estamos aqui há seis meses. Não trouxe muito. Um caderno em que anoto ideias, lembranças e endereços importantes; alguns objetos para meu uso pessoal e asseios, pouquíssimas coisas, todas nesta sacola.
O menino me apareceu no meio do caminho. Não deixa de lado essa bolsa com alguns pertences: estilingue e bolinhas de gude, um casaco de lã rala e um retrato do avô materno, já falecido. Lembra-se da família e sente saudades.
Tem seis anos, dotado de uma maturidade incrível. Não deixo que explorem seu trabalho, há muitos esmolando por aí, para encher a barriga de poucos. Ao pobre não é permitido sequer esmolar por si mesmo.
Por enquanto, vivemos com a ajuda da Entidade. As irmãs me arranjarão trabalho na lavanderia dos voluntários. O menino poderá me acompanhar quando não estiver na escola.
Em que interessa o meu passado? Interrompi uma gestação e não me arrependo. A essa altura já sabem como eu ganhava a vida. Então, quem sabe dizer qual destino esperaria esta criança, se tivesse nascido? Uma teta seca para sugar a fome? Um pai perdido? Ou a mãe sob um escombro porque decidiu salvá-la e lança-la a própria sorte neste mundo faminto?
Seus olhos não tinham espanto, a cor da mãe já tenebrosa, a fala sufocada, a poça de sangue. Chorava silencioso, entristecido. Um choro órfão e conformado.
Impossível que ela tenha sobrevivido. Ficaria feliz em entregar o menino à sua mãe, mas não posso crer que um fantasma tenha voltado à vida desta maneira, como quem vai ali, é esmagada por uma viga e já vem inteira. Essa senhora não tem sequer cicatrizes. Lamento, não estou convencida e tenho mais o que fazer, com licença.
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